quarta-feira, 24 de março de 2010

Se correr, ou se ficar, o bicho pega e come

Semana de 22 a 28 de fevereiro de 2010

Temos destacado em nossas análises o caráter contraditório da atual fase do ciclo econômico, a recuperação. São exemplos: a quebra de mais quatro bancos nos Estados Unidos e a ameaça de insolvência de diversos países europeus (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). No entanto, mesmo diante da fragilidade verificada no setor financeiro, os governos dos Estados Unidos e de países da Europa como Alemanha, França e Inglaterra, começaram a retirar as medidas emergenciais.
Os diversos governos têm sido convocados a adotarem políticas de austeridade econômica, o que significa a aplicação de medidas restritivas.
Na União Européia, fala-se em congelar salários e aumentar a idade de aposentadoria, com o objetivo de reduzir os déficits orçamentários. A retirada das medidas emergenciais somada ao ajuste fiscal provocou uma onda de greves na Zona do Euro. Na Grécia, foi convocada uma greve geral de 24 horas; em Portugal, os trabalhadores anunciaram uma greve nacional para o dia 4 de março; e na Espanha, os sindicatos iniciaram uma marcha de protestos no dia 23 de fevereiro. A Confederação Européia dos Sindicatos (CES) afirmou que os protestos “vão se multiplicar diante da insatisfação real, da inquietação forte em meio a riscos de regressão social”. Joel Decaillon, “número dois” da CES, afirmou que a Europa perdeu 5 milhões de empregos em 2009 e pode perder outros 7 milhões em 2010.
Em períodos de crise, as condições de trabalho se deterioram, com o aumento de trabalhadores temporários mal pagos e a intensificação da jornada de trabalho. Nesse sentido, Decaillon expressa o seu descontetamento com a atual situação dos trabalhadores, ao dizer que “a taxa de desemprego é muito alta, o trabalho precário avança velozmente.”
Mesmo no país mais poderoso da Zona do Euro, a Alemanha, a situação não é das mais confortáveis. O déficit fiscal ultrapassou 3,3% do PIB, sendo esta a primeira vez, desde 2005, que o país não conseguiu manter o limite máximo de 3%, apesar de todo o empenho e rigor da premiê Ângela Merkel, intransigente defensora do respeito ao limite dos 3%. Além do mais, o Produto Interno Bruto (PIB) só não registrou retração no quarto trimestre de 2009, porque a indústria aumentou suas exportações para as economias mais “sadias”.
Ora, a dívida pública apresenta uma dupla face. De um lado, ela cria uma classe de parasitas financeiros, os rentiers, que enriquecem negociando os títulos de dívida na bolsa de valores. A aquisição dos títulos da dívida, por parte de industriais, comerciantes, sociedades anônimas, bancos e especuladores, faz prosperar o jogo na bolsa, o que Marx denominou de “bancocracia”. Mas, por outro lado, o pagamento da dívida requer o aumento dos impostos e esses recaem, de modo geral, sobre os meios de subsistência de primeira necessidade, ou seja, aqueles destinados à reprodução da força de trabalho. Desse modo, confirma-se a afirmação de Marx de que “a única parte da chamada riqueza nacional que é realmente objeto da posse coletiva dos povos modernos é (...) a dívida pública.”
Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama criou uma comissão interpartidária para analisar o problema do déficit fiscal, que deve chegar a 10,5% neste ano. Para reduzir este déficit, as propostas não são nada animadoras para os trabalhadores: aumento dos impostos, adiamento de aposentadorias e corte nos serviços médicos cobertos pelo governo. Em 2007, antes do estouro da crise, a dívida do governo federal era de 37% do PIB, mas, em 2009, ultrapassou 53%. O Federal Deposit Insurance Corp. (FDIC), agência do governo dos EUA, informou que 702 bancos eram considerados problemáticos no fim de 2009. A FDIC disse que o aperto final ainda está por vir, pois outros 140 bancos podem ficar sob sua supervisão. O total de ativos problemáticos chegou ao patamar de US$ 402,8 bilhões no fim do quarto trimestre de 2009. A venda de casas nos EUA apresentou queda recorde, com retração de 11,2%, em janeiro. Jennifer Lee, economista do BMO Capital, disse que, apesar da ajuda do governo, “o setor deu outro grande passo para trás”.
A atual situação da economia dos EUA é de um verdadeiro impasse. Os consumidores não compram, os bancos temem emprestar, as empresas não contratam e o Estado retira os estímulos. O economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, Olivier Blanchard, disse que a economia dos EUA estaria crescendo por uma combinação de insulina (estímulos fiscal e monetário) e açúcar (a ansiedade dos empresários de preencher estoques vazios). Blanchard destaca que “a contração foi muito sincronizada. Mas a recuperação? Cada vez menos.” O impasse da economia também repercute no nível de emprego. A situação dos trabalhadores é preocupante. Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve (banco central dos Estados Unidos), disse que “as aberturas de empregos (nos EUA) são escassas”, com o aumento na demanda por mão de obra temporária.
No resto do mundo, alguns países apresentam certa recuperação. Argumenta-se que esta depende dos mercados globais que são estimulados pela “incansável” economia chinesa. Entretanto, Kenneth Rogoff, professor da Universidade de Harvard, disse que a China pode sofrer um baque nos próximos anos. Rogoff afirmou que “a reação chinesa à recente crise financeira aumentou claramente os riscos de que a China tenha uma bolha na economia alimentada por dívidas.” Ele completou que os valores dos imóveis se descolaram da realidade, sendo o mercado imobiliário o setor mais provável de eclosão de bolhas.
Com esse quadro da economia mundial, não surpreende o fato de que sobrem recursos para o comércio global. De acordo com Raed Safadi, diretor adjunto do departamento de comércio e agricultura da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), dos US$ 250 bilhões que o G-20 (grupo dos 20 países mais ricos do mundo) arrecadou em 2009, apenas 67% foram utilizados, restando US$ 80 bilhões ociosos. Isto é indicativo de que, mesmo com as taxas de juros mundiais em níveis muito baixos, os capitalistas não se arriscam a investir, o que acaba por travar a recuperação da economia mundial.
Então, os governos se vêem pressionados a continuarem com as políticas emergenciais, dadas as pressões sociais e, ao mesmo tempo, são forçados a adotarem medidas restritivas, tendo em vista a debilidade de seus orçamentos, o que aumentará ainda mais a insatisfação social.
Temos, portanto, o ressurgimento, noutro plano e noutra escala, de um antigo paradoxo: se o governo correr ou ficar o bicho pega e come.

Texto escrito por:
Kaio Glauber Vital da Costa: Economista, pesquisador do Progeb-Projeto Globalização e Crise na Economia Brasileira.

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Alta tensão na zona do Euro

Semana de 15 a 21 de fevereiro de 2010

O sistema financeiro mundial continua fortemente instável, e os mercados mundiais se encontram em alerta diante do perigo de eclosão de uma nova crise econômica e financeira, antes mesmo das consequências da última crise terem cessado.
No dia 19 passado, as autoridades americanas anunciaram a falência de mais quatro bancos nos Estados Unidos, aumentando para 20 o total de instituições que faliram somente este ano.
No início do mês, aumentou também a preocupação dos investidores com a enxurrada de notícias sobre o forte endividamento dos países europeus. Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha estão entre os que possuem as maiores dívidas. No caso da Itália, a dívida já representa mais de 100% do seu Produto Interno Bruto (PIB).
A situação na Europa ficou ainda mais complicada com as denúncias de que alguns países, como a Grécia, para aderir à zona do euro, ocultaram bilhões de dólares em dívidas com a ajuda de grandes bancos internacionais, o que já está sendo chamado de “subprime europeu”. Uma estratégia parecida com aquela que impulsionou o crescimento das hipotecas de alto risco nos Estados Unidos.
Instituições financeiras como o JPMorgan Chase e o Goldman Sachs desenvolveram instrumentos que possibilitaram aos governos da Grécia e da Itália mascararem empréstimos, forjando suas contas para criar a aparência de uma boa administração. A proposta apresentada pelo Goldman Sachs à Grécia esteve baseada num instrumento financeiro que prolongou sua dívida, empurrando-a para o futuro. Foi uma manobra semelhante à de uma pessoa que faz uma segunda hipoteca para pagar suas dívidas da hipoteca anterior. Em vários acordos dessa natureza, bancos adiantaram dinheiro a países europeus em troca de pagamentos futuros que não eram registrados como empréstimos contraídos, o que acabou por encobrir a real dívida dessas nações. Novamente, a Grécia serve de exemplo. Ela concedeu direitos sobre tarifas aeroportuárias e proventos de loterias como formas de pagamento.
Com as denúncias de fraudes nas contas públicas desses países, aumentou a tensão na zona do euro. A dívida de importantes economias européias, portanto, é bem maior do que aquilo que se pensava, e o grande problema debatido no velho continente agora é como a falência de países como a Grécia, cujo déficit orçamentário, em 2009, alcançou a marca de 12,7% do PIB, pode repercutir de maneira desastrosa na economia global. Alguns temem que esta falência traga consequências ainda piores, para o sistema bancário, que a quebra do Lehman Brothers, ocorrida em setembro de 2008. Já o colapso da Espanha colocaria em risco também a Alemanha, uma vez que os bancos alemães são detentores de grande parte dos títulos da dívida espanhola.
Os efeitos negativos dessa forte integração econômica e da livre mobilidade de capitais levaram economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) a modificarem a visão da entidade sobre o controle destes capitais. O FMI passou a sugerir que os países devem usar impostos e regulamentação para moderar a euforia dos capitais, responsáveis pelo surgimento das bolhas especulativas. Dessa maneira, o FMI altera o velho dogma sagrado do livre mercado, que sempre defendeu, chamando a atenção para o risco de formação de novas bolhas especulativas em países emergentes, como a China, onde os temores com a especulação imobiliária e a aceleração da inflação não param de crescer.
Se ao nível financeiro as tensões aumentam, no mundo do trabalho, as relações entre empregadores e empregados continuam muito instáveis. Em janeiro, trabalhadores da AB InBev, maior companhia de cerveja do mundo, bloquearam as entradas de fábricas da empresa na Bélgica durante duas semanas, exigindo o abandono do plano de eliminar 10% dos seus atuais 8 mil empregados na Europa Ocidental. A companhia, que detém 25% do volume mundial de vendas de cerveja, chegou a acorrentar os portões da fábrica na cidade de Leuven, para não permitir a entrada dos trabalhadores e forçar a demissão coletiva de 300 deles. Os custos das demissões e a pressão política das autoridades do Governo Belga, que avisaram que não arcariam com o seguro-desemprego, levaram a cervejaria a abandonar temporariamente o plano de demissões.
Nos Estados Unidos, as demissões em massa tornaram-se frequentes durante a crise, assim como as falências, os planos de reestruturação e corte de custos. Este fato, segundo o jornalista C. Sardenberg, vem proporcionando uma recuperação mais rápida em relação às demais economias que operam com amplas redes de proteção social, como a Alemanha, onde o governo pagou para que as empresas não demitissem, estimulando-as a contratarem em tempo parcial, pagando aos trabalhadores as horas não trabalhadas. Nos Estados Unidos, as empresas simplesmente demitem, fecham as fábricas e cortam custos, de tal maneira que o ajuste econômico é mais rápido, embora o custo social seja bem mais elevado. Mas a destruição e a violência das leis econômicas fazem mesmo parte do capitalismo, e a ação do Estado para reduzir tais efeitos constitui apenas uma tentativa de intervir na dinâmica de funcionamento desse sistema.
Enquanto isto, no Brasil, em ano de eleições, o afrouxamento fiscal que envolve a elevação de gastos da máquina administrativa preocupa os mais ortodoxos, entre os quais se encontram os principais quadros do Banco Central. Por isso, a expectativa é de elevação da taxa básica de juros, a Selic. De acordo com o Instituto Internacional de Finanças (IIF), órgão que representa as maiores instituições financeiras do mundo, a Selic deve saltar, dos atuais 8,75%, para 12,25% até o final de 2010. Caso isto ocorra, o Brasil encerrará o ano bem mais perto da posição que ocupava até pouco tempo, de país com a maior taxa de juros do planeta. Algo bastante coerente com a política econômica brasileira dos últimos anos, que, apesar dos programas de assistência social de caráter paliativo, sempre obedeceu à risca os mandamentos da cartilha econômica canônica do FMI. Como lembra Delfim Netto, ela esteve baseada na perseguição incansável pelas metas de inflação, na formação de superávits primários para o pagamento da dívida e na flutuação cambial acompanhada de grande mobilidade de capitais, mobilidade que se pretende ampliar.
Com efeito, se discute um projeto que pretende transformar São Paulo em centro financeiro da América Latina, através de medidas que visam ampliar a liberdade de entrada e saída de capitais, como a eliminação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), cobrado dos investidores (especuladores) externos. O projeto começou a ser pensado, acerca de um ano, pela iniciativa privada e tem a participação do governo. Ou seja, mais uma vez o Brasil chega atrasado à festa, no momento em que a farra financeira está demonstrando sinais de extrema fragilidade e que os demais países tentam criar mecanismos adicionais de controle de capitais.
Parece que, novamente, o Brasil se encontra na contramão da economia mundial.

Texto escrito por:
Diego Mendes Lyra: Mestrando em economia, Professor Substituto do Departamento de Economia da UFPB e pesquisador do Progeb – Projeto globalização e crise na economia brasileira

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